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quinta-feira, 26 de dezembro de 2013

A Casa do Céu (na Terra dos Infernos)

Quando você abre o jornal, o portal, a revista, é muito difícil encontrar notícias sobre a África. Não falo da África do Sul, do Egito, do Marrocos - aquela África que sempre está nos cadernos de turismo ou nos conflitos da Primavera Árabe.

Falo da desconhecida África de suas entranhas. O miolo, o coração de um continente, que bate e pulsa esquecido. Falo de países como Sudão, Congo, Etiópia, Chade. E principalmente a Somália.

A Somália fica no leste do continente, no "chifre" da África, que me faz lembrar a época dos estudos de ginásio porque, junto da África Subsaariana, forma a região mais pobre dali. Incrivelmente perigosa, desconhecida, abandonada. E incrivelmente fascinante. (minha sede de mundo...)


A Somália é o cenário de A Casa do Céu, escrita por Amanda Lindhout com ajuda de Sara Corbett. Nele, Amanda narra como se tornou uma jornalista que ama viajar, conhecer o mundo. Encontrou no trabalho uma possibilidade de desbravar fronteiras. E talvez por isso me identifiquei com ela.

A mim, me falta coragem para conhecer culturas fascinantes que despertam calafrios até os mais apaixonados turistas. Paquistão, Iraque, Irã. E a África, em seu coração, em sua pobreza, em seus rostos e aos milhões de pessoas que sobrevivem em terras de ninguém. Mogadíscio, capital somaliana, tem mais de 1,7 milhão de habitantes. Não dá para ignorar - essa que é uma das poucas informações que nos chegam de lá. Contudo, o fazemos cotidianamente. 

Ali na Somália, depois de realizar algumas viagens ao redor do mundo com seu dinheiro de garçonete, Amanda resolveu prosseguir com sua carreira de jornalista após uma tentativa amadora em Bagdá, para uma emissora islâmica, a Press TV. Foi então em Mogadíscio que ela conseguiu sua primeira grande história, a mais dolorosa de todas - um sequestro de 15 meses, do qual ela e seu companheiro australiano, Nigel Brennan, foram protagonistas.

Amanda e Nigel, no início do sequestro, por isso bem nutridos. Fonte: Al Jazeera/Reprodução

A narrativa é nada senão envolvente. Foram cerca de 500 páginas devoradas em pouco mais de um dia.

Poderia falar de como a mídia e os outros jornalistas culparam Amanda por ser violentada, estuprada, violada - e como isso me fez refletir que, não importa que você faça, sempre haverá alguém para culpar uma vítima, especialmente se ela for mulher. Poderia falar da injustiça e falta de compaixão que mesmo depois de enfrentar as mais terríveis experiências sub humanas, ela teve que encarar de seus colegas de profissão - e como isso me fez pensar sobre a falta de união da classe jornalística por aqui também.

Agora, contudo, só consigo confessar que fui contaminada pelo veneno africano. E, ao abrir dois portais, havia só uma notícia sobre a África: o conflito no Sudão do Sul, que se arrasta há bons anos. E só. E não consigo parar de pesquisar sobre Mogadíscio e as histórias que acontecem ali, sem testemunhas, sem contadores, solitárias e esquecidas.

UPDATE:
O usuário Ali Yusuf do Panoramio tem fotos lindas sobre a Somália. A minha preferida é esta aqui. Um outro usuário, Abdalla Alyaaziidi, tem umas imagens aterrorizantes de ruas desertas que, ao observar bem, é possível distinguir escondido um par de olhinhos infantis em algumas das cenas. 
Recomendo a leitura desta intensa reportagem da National Geographic sobre o país -- escrita por jornalistas que estavam à época de Amanda e Nigel e inclusive mencionam que, por pouco, escaparam do sequestro [Ficou estabelecido que, assim que deixássemos os limites urbanos de Mogadíscio, nossos guardas, fornecidos pelo GTF, seriam dispensados e substituídos por milicianos. Essas precauções não saíram barato, mas ainda bem que podíamos pagar. Dois jornalistas que seguiam em um carro poucos quilômetros atrás nós não tiveram a mesma sorte.]. Aparentemente, eles eram o alvo, mas a cadanense e o australiano é que foram pegos pelos milicianos.

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Depois de um período de abandono, esse post serve para inaugurar um novo rumo para o SP em Pauta. Meus repositórios de pensamentos que me acompanham dentro do meu apartamento nesta cidade cinza, dentro do vagão do metrô, dentro do ônibus lotado, dentro do meu coração e da minha mente inquietos que moram em São Paulo - mas visitam e se encantam com o mundo.

terça-feira, 18 de junho de 2013

História se faz na rua [ou os protestos, parte II]

O dia 17 de junho de 2013, segunda-feira, já será marcado por levar às ruas, como há muito tempo não se via no país, milhares manifestantes protestando em uníssono, ao mesmo tempo. Em São Paulo, o Datafolha estima em 65 mil participantes - eu, lá no meio, sinceramente, asseguro com base no preciso sistema de medição Olhômetro que havia mais que isso. Bem mais que isso:

_início da concentração, no Largo da Batata. Foto: Miguel Schincariol/AFP
_Parte dos manifestantes na Avenida Paulista, quando o movimento dispersou para a ponte Estaiada e o Palácio (?) dos Bandeirantes. Foto: Márcio Fernandes/Estadão Conteúdo 

E vale ver as imagens aéreas da TV Folha:



Enfim, queria continuar a exposição de minhas ideias com base no entendimento no que estou lendo e acompanhando entre meus amigos próximos/participantes do Movimento Passe Livre (MPL) e também baseadas nas reações dos mais diversos perfis de coleguinhas. Nunca é demais ressaltar:

1. Não são R$ 0,20; mas também não é "corrupção"
Digno o apoio de todo mundo depois da covardia da ação da PM na quinta-feira, 13, descendo chumbo na geral. Foi um recado de que eles não podem calar insatisfações e manifestações, e todo mundo tem uma - seja a inflação, a corrupção dos reaças, etc. Como disse no post anterior, "diversos interesses que nasceram com nossa incapacidade de conseguir o que queremos".

O movimento possui, porém, um propósito. Não são 20 centavos (são 40, porque é ida e volta), mas ainda é o transporte público de qualidade. Começa que a raiz desse problema engloba a corrupção e desvios de verbas entre os consórcios que exploram cada atividade do transporte, a terrível condição do trânsito da cidade, a superlotação e tratamento desumano de todo mundo dentro de um veículo abarrotado de gente, a falta de corredores de ônibus e linhas de metrô, o tempo que se gasta para se deslocar de uma área a outra - decorrente do péssimo [ou seria ausência de?] planejamento urbano que concentra centros empresariais e econômicos em áreas de elite e segrega pobres, pretos e marginalizados em áreas distantes.


_minha visão no metrô e no ônibus, respectivamente. @stripolias

ESSA é a causa do protesto. ESSA é a situação que exige uma ação imediata, a começar pela revogação do aumento da passagem, já abusiva. Claro que queremos mais educação, saúde, menos desvio de dinheiro de Copa, o fim da inflação (que prejudica mais os pobres que os classe média, vale frisar), e [quase] tudo aquilo que os textos circulantes nas mídias sociais falaram. Mas mesmo o lado direitista das ruas - sim, ele existe, e a diversidade de pensamento faz parte do processo democrático - é afetado por essa questão do transporte público e deve sim se informar e abraçar a causa. Você, playboy, que saiu à rua ontem, pense que o trânsito seria menor se todo mundo pudesse ir e vir coletivamente, acomodado, melhor. E até você, empresário, produziria bem mais e teria um ambiente de trabalho bem melhor se seu funcionário não se espremesse duas horas no transporte para chegar à empresa.

2. Manifestação não é festa
Me incomoda o clima de festa. Acredito que gritos bem humorados são importantes para deslegitimar autoridades como a PM e até mesmo para grudar na cabeça das pessoas. Acredito que o humor faz pensar, o humor quebra barreiras do que costumamos colocar num pedestal como algo inalcançável, ou uma situação política opressora, tirando sarro do lado mais forte, claro.

Mas manifestação não é festa!

É reivindicação! É busca de direitos! É a criação de uma situação tensa para que os tomadores de decisão não vejam saída senão FAZER ALGUMA COISA! Não é pintar o rosto e sair bonitinho para ~postar a fotinha no Instagram~, é gritar, é explodir sua raiva no grito.

Reafirmo minha posição favorável a pichações políticas, a exemplo de stêncils, para deixar rastro e captar aquele cara que está esmagado dentro do busão, voltando para casa no dia seguinte, e despertar nele sua revolta.

3. Pluripartidário, não apartidário ~meu ponto polêmico do post~
Ouvimos muito essa história de que o movimento não tem partido, e algumas pessoas inclusive tentaram abaixar as bandeiras do PSTU, PSol, PCO, PC do B que se levantavam à frente do movimento.

Acho essa atitude totalmente anti-democrática.

Historicamente, esses partidos esquerdistas [e nanicos, convenhamos] fazem importante oposição aos governos do PT e PSDB, polarização majoritária do cenário político brasileiro, que jogam as regras do jogo de alianças conforme interesses elitistas. A democracia, a rua, é muito maior que um movimento estudantil. Óbvio que eles representam uma minoria. Óbvio que nem todo mundo tem partido, e que a maioria é sem partido. Portanto, a realidade é pluripartidária, não apartidária, e impor um cale-se, seja a ele quem for, é anti-democrático. Levante um cartaz "sem partido", "paz pluripartidária", "política se discute ideias", sei lá. Sejam criativos.

4. Sofativismo é importante

Olha, nem sei se precisaria desse tópico, mas ainda tinha gente na minha timeline de mimimi hoje sobre isso. Olha, usando a metalinguagem, se não fosse a web não seria possível ter discussões de ideias e exposição de imagens cruas e sem edição como estamos vendo até agora.



Eu sequer seria capaz de ler tudo que eu li da fonte original do MPL sem ter que me deslocar até uma de suas reuniões! Claro, existem algumas fontes cujas opiniões vão mais longe por conta de sua influência, essas têm um peso maior que meus textos e reflexões, por exemplo. Mas o poder de disseminação da rede é inegável - principalmente quando ele sai do online e chega no offline.
Atenção: são debates de ideias. Não reclamações infundadas.

5. Ações injustificadas não deslegitimam o movimento
Infelizmente, há atos de vandalismo e eles são claramente minoritários. Enquanto escrevo este texto, acompanho imagens de um carro link da Record sendo incendiado. Simplesmente ridículo e inócuo em termos de efetividade.

Sério, não sejamos ingênuos e acreditamos na ~mudança de opinião repentina doJabor~, que historicamente sempre defendeu ideais elitistas. Mas isso se combate com IDEIAS, usando a rede para disseminar relatos, debates.

Essas ações, contudo, não deslegitimam a manifestação como um todo, porque a causa [ver item 1] continua lá, não resolvida, e a ampla maioria propriamente condena esses atos. Igualmente vergonho agredir policiais, tão vítimas quanto nós, de um sistema falho e ineficaz. Afinal de contas, mesmo aqueles PMs que pensam bosta e acham que tem que meter bala em todo mundo, são seres humanos. Pensar em meter balas neles nada mais é do que fazer o que deles criticamos.

Aproveitando: segue a foto de uma dessas pessoas que encabeçaram destruições desmedidas. Está circulando no Facebook, tomara que achem e identifiquem esse imbecil. [viva, de novo, a sociedade digital. Todos nós temos uma câmera na mão]



6. Ainda estamos aprendendo (e cuidado com o que você deseja)
Não sabemos direito onde isso vai chegar. Não sabemos o que é protestar de fato desde quando? 1992, Impeachment do Collor? São tentativas. Melhor do que ficar reclamando nas redes sociais, como ainda tem gente falando "ah, não vai dar em nada"; ou "um bando de desocupado".

Não vamos usar isso para pedir causas absurdas. Já vi gente falando "Fora, Dilma" que, além de ser completamente desconexo com a questão do transporte, representa uma ação que não gera solução nenhuma. E importante:




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Eu, Gabriela, jornalista de tecnologia, 26 anos, saí do trabalho às 17h30 para ir à praça da Sé, mas não consegui porque um "problema" em composição na estação Morumbi, da CPTM, interrompeu a circulação de trens por mais de 40 minutos. Às 19h, depois de um ônibus absurdamente lotado e uma fila de 20 minutos para entrar na estação Faria Linha, metrô, linha amarela, me deparei com apenas UMA CATRACA de saída nas estações Sé e São Bento, região central de São Paulo. Vim pra casa e escrevi este post.

sexta-feira, 14 de junho de 2013

São Paulo já parou

Sempre fui simpática a manifestações, preguiçosa demais para participar, me envolvi em poucas quando fiz o Ensino Médio na ETESP e em uma na universidade, na Unesp. Desta vez, sem preguiça.

Não, não fui para a rua [ainda]. Das primeiras vezes, não estava em São Paulo. Na última quinta-feira, estava trabalhando no Transamérica Expo Center, extremo sul de São Paulo, em um dia com greve de transporte público. Não consegui chegar. Não deixei, contudo de participar - lendo, conversando com as pessoas, me informando, disseminando informações online a apoiando colegas que lá estavam, dando a cara para bater. O intuito deste texto é me posicionar publicamente sobre o que estamos vivenciando e responder questões que surgem aos opositores de Facebook.

1. Entenda os R$ 0,20.
O sistema de transporte público em São Paulo é operado da seguinte forma: a prefeitura dá a concessão dos ônibus a empresas privadas, por meio de licitações. Cada uma delas é responsável por uma zona da cidade.  A empresa administra, além do valor das passagens, um subsídio recebido da administração pública.

O objetivo de qualquer empresa privada é o lucro. Portanto, explorar o lucro em cima de um direito fundamental significa cobrar mais da prefeitura (o subsídio aumenta) e cobrar mais das passagens (a tarifa aumenta). Logo, a cada reajuste, não se engane - estamos pagando duas vezes, afinal, o orçamento público vem de nossos impostos.

O Movimento Passe Livre (MPL) critica fundamentalmente esse modelo de negócio. Não podemos servir a interesses privados e lucrativos quando o que está em jogo é uma atividade cuja concepção em si deveria ser direito de todos. Ir e vir.

2. Transporte de graça
Seria lindo transporte de graça, como prega o MPL. Não, não é utopia- essa política é praticada totalmente em Agudos (interior de São Paulo) e parcialmente em países como a Holanda (onde estudantes da União Europeia, e não só holandeses, trafegam em trens, inclusive intermunicipais, gratuitamente), por exemplo.

Obviamente, estas políticas não foram implantadas do dia para a noite. É inviável pensar que, de repente, 19 milhões de moradores da região metropolitana de São Paulo iriam andar de metrô e ônibus de graça. Porém, é preciso repensar o modelo acima para ao menos termos as tarifas reduzidas substancialmente ao mesmo tempo em que melhoramos a qualidade da mobilidade nessa cidade. Não é utopia o que prega o MPL, existem exemplos que, se não devem ser espelhos para serem copiados integralmente, podem ser usados de inspiração para motivarem uma melhora.

3. Mobilidade em São Paulo?
A qualidade do transporte público de São Paulo não é tão ruim quando analisados os veículos em si. Temos metrô e trens modernos com ar condicionado. Temos ônibus relativamente novos e bem conservados - quando comparados a países como Argentina e Uruguai, onde estive recentemente. Lá, os veículos são velhos, muito velhos. Barulhentos. Mal conservados.

O problema é que não há mobilidade em São Paulo. A falta de qualidade no transporte público é porque ele é caro e ineficiente. A malha ferroviária não cobre regiões importantes da cidade, as conexões entre linhas é tumultuada. Não quero dar números para balizar esses argumentos - basta olhar as fotos abaixo.

Metrô:



CPTM:




Eu chamo carinhosamente de Carnametrô e CPTM Folia, respectivamente.

Em vez de se espremer assim, muitos optam por dirigir seus carros. Afinal, o crédito para se comprar um automóvel é acessível. Carros zero são cada vez mais baratos. O carro faz parte do sonho de consumo da cultura nacional. O problema é que não cabe tanto carro na rua. Batemos recordes consecutivos de congestionamentos. São Paulo já é parada.

Quando o trânsito para, os ônibus também não andam. Se você cria corredores, você trava o trânsito. Sem corredores, trava todo mundo. Dentro do busão, tudo extremamente lotado. Ou seja: você paga caro para não se mover. Não é cheio, é lotado, nas mesmas (ou até piores) condições acima.

O transporte público de São Paulo é ruim porque ele não faz o que deve fazer com eficiência: deslocar pessoas de um ponto a outro na cidade, em tempo hábil.

___________________________uma pausa, rapidão.
Como melhorar essa situação? Vem cá, Haddad, senta aqui, vamos discutir as tarifas do busão. Vem cá, Alckmin, por que raios você não dá uma acelerada nessas linhas novas que estão travando as ruas pros carros, e ainda não prontas para transportar gente debaixo da terra? Vamos tomar um café ali na Paulista, pra gente conversar.

Obviamente, isso não acontece. É delirante. E aí surge a necessidade de ir às ruas. Chamar a atenção para toda essa situação. Tudo dito até aqui é a essência do primeiro movimento. Mas já estamos no quinto ato! Vamos continuar.

4. Quero chegar em casa logo! Esse bando de baderneiros!
Quando você vai para o centro, para uma área economicamente ativada cidade, você afeta as pessoas ao redor. Na teoria, elas tenderiam a querer saber o porquê da manifestação tão inflamada. Infelizmente, aprisionados pela estafa de um dia de trabalho e com argumentos dados pela cobertura midiática, o transtorno individual se sobressai em meio ao esforço coletivo.

Ora, se o transporte (público e trânsito particular) melhorasse, as pessoas chegariam em casa rapidamente e com conforto.

5. Ok, entendi e apoio! Mas vão protestar na prefeitura, na sede do governo.
Concordo. Temos que fazer barulho para as autoridades, pressioná-las. Acontece que, àquela ocasião, elas estavam em Paris, defendendo a candidatura paulistana para sede de uma feira de comércio internacional, que traria gasto para a cidade com a visita de executivos do mundo todo.

Ademais, queremos você conosco. Queremos que vocês se misturem a nós. Aliás, na última quinta-feira, 13, havia um acordo com a Polícia Militar sobre não ocupar a Prefeitura ou o Estado. Isso foi respeitado, para evitar o confronto com o braço armado do estado. Você discordaria de alguém que aponta uma arma para você?

6. Mas para quê quebrar tudo?
Na estimativa da PM, havia 4 mil pessoas nas ruas. O estrago causado, algumas agências bancárias quebradas, algumas estações de metrô depredadas, foi de responsabilidade de uma minoria. Se as 4 mil pessoas realmente estivessem ali para quebrar tudo, certamente, obviamente, as leis da física nos fazem claro que o estrago seria MUITO MAIOR. Ninguém quer destruição de coisas particulares ou públicas. Afirmo seguramente que quem causou a depredação forma uma quantidade pífia frente a quem legitimamente protestava.

Agora, dois pontos polêmicos:
Pichações. Sou a favor de rastros nos muros com pichações políticas. Quando estive em Madri, Paris, Barcelona, Berlim, Londres, Buenos Aires e Montevidéu, vi os muros inflamados de diversas mensagens políticas. Não vejo de todo o mal - as pessoas olham, leem e refletem. Sei que há muitos que discordam comigo nesse ponto, e acho válido discordar, até porque muitos pichadores ultrapassam o limite da mensagem política e realmente depredam bens públicos. Mas as frases e mensagens são fotografadas e espalhadas pelo mundo. É uma maneira de fazer nossa voz falar mais alto e chegar mais longe.

Piquetes com fogo. Eles são feitos geralmente ao incendiar o lixo, para conter o avanço da tropa de choque da PM e da ROTA. Vou tratar da abordagem policial posteriormente. Para quem não sabe, são as forças de repressão e truculência máxima da Polícia Militar, que vão varrendo as ruas em cordões de isolamento com escudos e cassetetes, ao som de batucadas marciais. Na segunda "camada" de pessoas, a artilharia de bombas de gás. Essa estratégia é para desmantelar e dissipar manifestações. Calar a voz. Como contê-los? Como evitar essa ação violenta, que soa como - ok, até aqui vocês brincaram de protestar, agora já deu, não deixamos mais. VOLTEM! Resposta: com piquetes de lixo. Até onde vai meu discernimento, não acredito que queimar lixo é um ato de vandalismo. Destrói-se o que já foi descartado.

No geral, o que vejo é que existe sim vandalismo. Eles são, contudo, minoria, e usados para desmoralizar a causa e o protesto como ele é realmente realizado. E ao contrário do que se possa imaginar, não causam um prejuízo milionário equiparável à quantidade de perdas causadas pelo trânsito parado, pelas bombas explodindo, pelas vidas machucadas.

7. Por que não votam direito? Agora é tarde para reclamar.
Não, não é tarde. O exercício democrático não significa apenas apertar botões de dois em dois anos. Não interessa em quem você votou - é importante entendermos que não temos que seguir leis do governo porque o governo manda no povo. O governo serve o povo. Nós somos o patrão. Nós mandamos. Mesmo sem votar no Haddad e no Alckmin (e aqui eu atinjo diferentes e distantes perfis de paulistas e paulistanos, esta não é uma luta partidária contra PT ou contra PSDB), você tem direito de cobrar de AMBOS uma atuação justa e que eles atendam os seus interesses. ISSO é democracia, que implica também obrigações a você, eleitor.

8. A gota d'água
E aconteceu. O gigante acordou. Um monte de gente saiu às ruas primeiro por causa do transporte, mas de repente, outros cartazes foram erguidos. Corrupção, educação, pedindo qualquer coisa, menos um aumento de passagens de uma coisa que não funciona e deveria ser mais barata. A meu ver, as pessoas se deram conta desse poder e da necessidade de se reivindicar ao ver especialmente as imagens da truculência policial. A rede por si só deu conta de disseminá-las:

a. Polícia atira em poucos manifestantes que pediam "sem violência":




b. Polícia atira bomba de gás em apartamento onde moradores filmavam manifestação:
Link (não consegui integrar o vídeo)

c. Jornalista da Carta Capital é preso por portar VINAGRE:



 d. Polícia atira na imprensa:



e. Policial quebra vidro da própria viatura:


 d.  Imagens que falam por si mesmas:







Nesse momento, percebemos que o movimento perdeu o controle. O próprio MPL não possui tanta gente assim em sua base e, de repente, todo mundo que se manifestasse se tornou alvo de violência. As pessoas começaram a ser convocadas para protestar por diversas razões, unindo-se àquelas que perceberam que o aumento de R$ 0,20 e a inaptidão de negociar interesses públicos também esbarra a solução de diversos problemas estruturais os quais lemos, convivemos, engolimos cotidianamente. Isso tem uma explicação econômica, como foi abordado em excelentes textos, como este aqui, do Alexandre Versignassi, da Superinteressante. A CNN resumiu bem:

O Brasil está, atualmente, tendo a experiência de um colapso generalizado de sua infraestrutura. Há problemas com portos, aeroportos, transporte público, saúde e educação. O Brasil não é um país pobre e os impostos são extremamente altos. Brasileiros não veem razão para tanta infraestrutura ruim quando há tanta riqueza altamente taxada. Nas capitais estaduais, as pessoas gastam até quatro horas diárias no trânsito, seja em seus carros ou em transporte público lotado de péssima qualidade.

O governo brasileiro tomou medidas remediais para controlar a inflação ao cortar impostos e não percebeu ainda que o paradigma precisa mudar para uma abordagem focada em infraestrutura. Ao mesmo tempo, o governo brasileiro está reproduzindo em menor escala o que a Argentina fez há alguns anos: evitar austeridade e prever o aumento das taxas de juros, o que está levando à inflação alta e crescimento baixo.

Além do problema de infraestrutura, há diversos escândalos de corrupção que permanecem sem julgamento, e os casos sendo julgados tendem a terminar com absolvição dos réus. O maior escândalo de corrupção na história brasileira finalmente terminou com a convicção dos culpados e agora o governo tenta reverter a decisão da justiça usando manobras por meio de inacreditáveis emendas constitucionais: a PEC 37, a qual anula o poder investigativo dos promotores do Ministério Público (equivalente brasileiro aos District Attorneys norte-americanos), delegando a responsabilidade de investigação totalmente à Polícia Federal. Além disso, outra proposta busca submeter as decisões da Suprema Corte ao Congresso - uma completa violação dos três poderes.

Esta são, de fato, as revoltas dos brasileiros.

É no mínimo curioso que um veículo de mídia norte-americano conservador em sua essência reflita e exponha diversos interesses que nasceram com nossa incapacidade de conseguir o que queremos. E enfrentar a violência policial, como não vemos desde a época da ditadura brasileira.

9. Sou cagão. Até apoio, mas tenho medo de me machucar. Ou preguiça.
Eu sinceramente sugiro que você vá observar. Chegue na concentração e observe a atmosfera. Olhe, de longe, os manifestantes. Presencie, sem filtros, quais os anseios e o meio de atuação de todo mundo que dá a cara para bater. Não precisa marchar - entendo e compartilho do medo depois de ver imagens de violência como vimos. Mas presencie e PASSE ADIANTE nossos motivos. Desde a raiz da motivação, até nosso principal mote agora: o direito de manifestar.

O texto está muito grande, então vou parar aqui. Amanhã, mais tópicos: (1) o poder das redes digitais e o ativismo de sofá (que eu acho válido); (2) a importância de se falar com quem não concorda com isso tudo (ou os malefícios de pregar para convertidos); (3) o dilema de manter o pacifismo quando tornamos vítimas da violência gratuita; (4) a condição financeira não anula protestos sociais. Se quiserem sugerir algum tópico, comentários ou Twitter: @stripolias.

E se junte aos milhares no Quinto Grande Ato Contra o Aumento das Passagens agendado para segunda-feira, 17 de junho, às 17 horas, no Largo da Batata (próximo ao metrô Faria Lima). Estarei lá.


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Eu, jornalista de tecnologia, 26 anos, pego um ônibus, dois metrôs e um trem para chegar ao trabalho. Para voltar, tudo isso, em ordem inversa.