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quinta-feira, 26 de dezembro de 2013

A Casa do Céu (na Terra dos Infernos)

Quando você abre o jornal, o portal, a revista, é muito difícil encontrar notícias sobre a África. Não falo da África do Sul, do Egito, do Marrocos - aquela África que sempre está nos cadernos de turismo ou nos conflitos da Primavera Árabe.

Falo da desconhecida África de suas entranhas. O miolo, o coração de um continente, que bate e pulsa esquecido. Falo de países como Sudão, Congo, Etiópia, Chade. E principalmente a Somália.

A Somália fica no leste do continente, no "chifre" da África, que me faz lembrar a época dos estudos de ginásio porque, junto da África Subsaariana, forma a região mais pobre dali. Incrivelmente perigosa, desconhecida, abandonada. E incrivelmente fascinante. (minha sede de mundo...)


A Somália é o cenário de A Casa do Céu, escrita por Amanda Lindhout com ajuda de Sara Corbett. Nele, Amanda narra como se tornou uma jornalista que ama viajar, conhecer o mundo. Encontrou no trabalho uma possibilidade de desbravar fronteiras. E talvez por isso me identifiquei com ela.

A mim, me falta coragem para conhecer culturas fascinantes que despertam calafrios até os mais apaixonados turistas. Paquistão, Iraque, Irã. E a África, em seu coração, em sua pobreza, em seus rostos e aos milhões de pessoas que sobrevivem em terras de ninguém. Mogadíscio, capital somaliana, tem mais de 1,7 milhão de habitantes. Não dá para ignorar - essa que é uma das poucas informações que nos chegam de lá. Contudo, o fazemos cotidianamente. 

Ali na Somália, depois de realizar algumas viagens ao redor do mundo com seu dinheiro de garçonete, Amanda resolveu prosseguir com sua carreira de jornalista após uma tentativa amadora em Bagdá, para uma emissora islâmica, a Press TV. Foi então em Mogadíscio que ela conseguiu sua primeira grande história, a mais dolorosa de todas - um sequestro de 15 meses, do qual ela e seu companheiro australiano, Nigel Brennan, foram protagonistas.

Amanda e Nigel, no início do sequestro, por isso bem nutridos. Fonte: Al Jazeera/Reprodução

A narrativa é nada senão envolvente. Foram cerca de 500 páginas devoradas em pouco mais de um dia.

Poderia falar de como a mídia e os outros jornalistas culparam Amanda por ser violentada, estuprada, violada - e como isso me fez refletir que, não importa que você faça, sempre haverá alguém para culpar uma vítima, especialmente se ela for mulher. Poderia falar da injustiça e falta de compaixão que mesmo depois de enfrentar as mais terríveis experiências sub humanas, ela teve que encarar de seus colegas de profissão - e como isso me fez pensar sobre a falta de união da classe jornalística por aqui também.

Agora, contudo, só consigo confessar que fui contaminada pelo veneno africano. E, ao abrir dois portais, havia só uma notícia sobre a África: o conflito no Sudão do Sul, que se arrasta há bons anos. E só. E não consigo parar de pesquisar sobre Mogadíscio e as histórias que acontecem ali, sem testemunhas, sem contadores, solitárias e esquecidas.

UPDATE:
O usuário Ali Yusuf do Panoramio tem fotos lindas sobre a Somália. A minha preferida é esta aqui. Um outro usuário, Abdalla Alyaaziidi, tem umas imagens aterrorizantes de ruas desertas que, ao observar bem, é possível distinguir escondido um par de olhinhos infantis em algumas das cenas. 
Recomendo a leitura desta intensa reportagem da National Geographic sobre o país -- escrita por jornalistas que estavam à época de Amanda e Nigel e inclusive mencionam que, por pouco, escaparam do sequestro [Ficou estabelecido que, assim que deixássemos os limites urbanos de Mogadíscio, nossos guardas, fornecidos pelo GTF, seriam dispensados e substituídos por milicianos. Essas precauções não saíram barato, mas ainda bem que podíamos pagar. Dois jornalistas que seguiam em um carro poucos quilômetros atrás nós não tiveram a mesma sorte.]. Aparentemente, eles eram o alvo, mas a cadanense e o australiano é que foram pegos pelos milicianos.

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Depois de um período de abandono, esse post serve para inaugurar um novo rumo para o SP em Pauta. Meus repositórios de pensamentos que me acompanham dentro do meu apartamento nesta cidade cinza, dentro do vagão do metrô, dentro do ônibus lotado, dentro do meu coração e da minha mente inquietos que moram em São Paulo - mas visitam e se encantam com o mundo.