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terça-feira, 4 de fevereiro de 2014

Woody Allen e a separação obra x caráter

Com a divulgação da carta de Dylan Farrow, acusando Woody Allen de estupro e pedindo -- inclusive a grandes nomes de Hollywood -- boicote à sua obra, mais uma vez temos o caos nas redes sociais.

Foto: Boston.com


O que me chama atenção nisso tudo é a postura de alguns agentes do universo do cinema. Antes de seguir, minha postura pessoal sobre o caso é: temos palavra de Farrow x palavra de Allen. Particularmente, acho doentio inventar uma história dessa. Se isso ocorreu, a moça necessita urgentemente de ajuda psicológica. O mesmo veredicto se a história for verdadeira.

Em particular, um texto publicado nesta segunda-feira (3 de fevereiro) no Estadão, assinado por Luiz Zanin Oricchio, me inflamou os nervos. Porque tenta, sem assumir sua real intenção, defender o cineasta ao presumir que as alegações de Farrow são falsas. Menosprezando o discurso dela. Sob um título que mascara tudo isso, que dá a entender que ele falará do legado de Woody Allen para o cinema.

Assim, convido vocês a me acompanharem nessa armadilha de retórica (texto completo original aqui e em preto, meus comentários em vermelho):

Ataque a Woody Allen não invalida sua obra
Esse deveria ser o ponto principal. Defender a obra do cineasta, embora ataques. Então, prossigamos.

História da arte está repleta de criações que contradizem equívocos de criadores
Ok, então teremos outros exemplos históricos como centro da argumentação. Prossigamos.
03 de fevereiro de 2014 | 20h 19

Luiz Zanin Oricchio - O Estado de S. Paulo

Por sua complexidade, o caso Woody Allen merece ser analisado com toda a delicadeza (claro), sem ideias preconcebidas (sim). Sei que é difícil pedir serenidade num tempo em que as redes sociais, em particular, se ocupam de linchamentos e conclusões instantâneas (verdade), mesmo em assuntos controversos e com vários ângulos a serem vistos. No caso, há pelo menos dois, a palavra de Woody Allen e as de Mia Farrow e agora de Dylan, sobre o alegado abuso (exatamente, palavra versus palavra).

É bom lembrar que somente agora, aos 28 anos, Dylan se lembrou de acusar o cineasta do abuso que teria acontecido em 1992, quando ela tinha sete. (Peralá! "Se lembrou"? Se foi real, acredito que isso tenha atormentado a moça há muito tempo, como ela mesma citou em sua carta aberta. O uso do verbo "lembrou" já denota seu juízo de valor sobre a moça, como se, oh, esqueci que tinha sido abusada sexualmente, vou falar agora, então)

Vale também lembrar que Allen nunca foi processado e médicos que examinaram a menina não conseguiram dela depoimentos que incriminassem o padrasto (aqui eu não entendi mesmo. Médicos não conseguiram depoimentos  que o incriminassem. Achei completamente sem sentido). É um caso duvidoso, no qual as verdades factuais se perdem em incertezas, versões e impressões. Difícil decidir o que realmente pode ter acontecido (Uai, você mesmo disse que não era para usar ideias preconcebidas ou listar culpados em redes sociais... mas parece que você quer decidir quem é o culpado, mesmo sem recursos para tal).

Para nós, que estamos de fora, fica uma impressão de que tudo tem origem na tumultuada separação de Woody Allen e Mia Farrow, que parece ter causado um ressentimento incurável na atriz (apelar para o ressentimento de separação da mulher traída é o clássico para desmoralizar uma outra pessoa, a mãe da abusada). Ora, ela tem todo o direito de odiar Allen por tê-la abandonado pela enteada dela, Soon-Yi, com quem o diretor vive até hoje (leram bem? Enteada. Não é uma simples questão de ressentimento. Pense que sua filha adotiva de repente revela ter um relacionamento com o seu marido. Acredito que por si só isso já é bem grave, mesmo não havendo laços de sangue, apenas laços emocionais. Nem preciso citar Freud, porque inacreditavelmente ele será citado por você mais adiante).

Por que outro motivo Mia Farrow teria declarado que possivelmente um dos seus filhos naturais com Woody, Ronan Farrow, hoje com 25 anos, teria por pai, na verdade... Frank Sinatra? (Desmoralizar agora a Farrow porque ela teria transado com um outro homem, trazendo à tona um dos maiores medos masculinos, de criar a 'cria' que não é sua? E, mesmo assim, esse problema se resolve com um simples DNA. E, além de tudo, não vem ao caso em relação à acusação de estupro de uma terceira pessoa...)

Não seria o desejo de ferir o antigo companheiro levado até um limite inimaginável? (Viu só?) Se há alguma dúvida de que Shakespeare tinha razão ao dizer que o universo não conhece fúria maior do que o de uma mulher ferida, Mia se encarrega de demonstrar a frase do Bardo. Teria Mia arrastado os filhos nesse ódio, ou todo esse rancor seria justificado por atos do cineasta? (Como assim? Se houve agressão sexual, acredito que o ódio nasceu daí, não da mãe traída! Francamente!) Difícil decidir de forma definitiva (Sério que você acha difícil? Parece que você já decidiu...).

Pausa: Até agora estou esperando a análise histórica de casos semelhantes em que o caráter de um artista se opunha ao seu legado. Estou lendo apenas especulações sobre a vida pessoal dos envolvidos.

Dylan tem dito que não pretende reabrir o processo contra Allen. Apenas deseja que seus filmes não sejam vistos, como se o sucesso do ex-padrasto a ofendesse. E quisesse vingar-se do homem comprometendo a obra. A tese de fundo é que existiria uma continuidade direta entre o artista e sua obra. Se o artista é culpado de alguma falta, sua obra deve ser esquecida, ou colocada numa espécie de índex moral. Olha, eu acho razoável que ela, caso fale a verdade, resolva atacar a obra do cara. Porque isso é martelado sempre que ele é mencionado na mídia. É a forma de ela atacar ele agora, já que factualmente temos palavra x palavra. 

Tal argumento, supondo-se que Allen seja “culpado”, não se sustenta na história da arte e das ideias. François Villon era ladrão e poeta. Jean Genet passou a juventude em reformatórios e prisões. Martin Heidegger serviu ao nazismo e nem por isso o autor de Ser e Tempo deixa de ser considerado um dos filósofos mais importantes do século 20. Louis Ferdinand Céline era pró-nazista, escreveu panfletos odiosos contra os judeus e chegou a ser condenado à morte, à revelia, pela Resistência Francesa. Certo, e, no entanto, escreveu um romance como Viagem ao Fim da Noite (Voyage au Bout de la Nuit), considerado, por Sartre, divisor de águas na literatura francesa. Isso sem falar num compositor tão fundamental como Richard Wagner, ou num regente como Wilhelm Furtwängler, que aparece em vistosas fotos ao lado de Hitler. Enfim, se a conduta desses personagens revelou-se deplorável, suas obras subsistem e, em grande parte, porque atingem um grau de beleza que contradiz as posições equivocadas assumidas por eles mesmos. (Finalmente, os exemplos históricos. Agora, eu esperaria uma análise da obra do Allen, embora as acusações)

São exemplos extremos, que causam perplexidade em quem preferiria que a natureza humana fosse mais nítida, isenta de ambiguidades e sentimentos contraditórios.

Além do mais, desde Sigmund Freud aconselha-se cautela sobre esses casos de suposta sedução Voltamos à análise do ataque. E não da obra. Convém lembrar que durante os anos iniciais de sua prática, Freud ouvia frequentemente de suas pacientes o relato de seduções, em geral por parte do pai. Eram tão frequentes que Freud temeu que a população de Viena fosse composta inteiramente de pais pervertidos. Até mesmo seu velho pai poderia ser incriminado. Ao aprofundar sua pesquisa, Freud começou a perceber que estes casos tinham acontecido, no mais das vezes, na fantasia das pessoas e não na realidade. As supostas seduções fariam parte do desejo inconsciente das pacientes e não da realidade factual. Os pais, coitados, não tinham culpa nenhuma. (ok. Mas isso não significa que você deve duvidar de uma acusação de estupro e assumi-la como falsa de cara, até que se haja comprovação. A ideia não é ajudar a vítima e reunir provas para realmente acusar com substância? Fazer pouco caso de uma pessoa, que seja criança, que consegue romper a barreira da vergonha, medo e silêncio, só contribui para piorar ainda mais o trauma. Estatísticas mostram que a maioria dos estupros acontecem por pessoas conhecidas da família, e muitos dentro de casa. Não é uma pessoa aleatória que vai te puxar pelos cabelos e te arrastar até um terreno baldio. Claro, impossível não lembrar do caso Escola Base, que marcou o jornalismo brasileiro por acusar injustamente os proprietários de uma escola infantil. Contudo, exames médicos inocentaram as pessoas. Logo, a abordagem correta seria primeiro dar apoio psicológico e buscar, antes de mais nada, evidências do abuso... o que você não propõe em nenhum momento. Apenas coloca a palavra da suposta vítima em xeque)

Claro, ninguém precisa ser psicanalista ou acreditar em Freud para inocentar Allen – que aliás, se analisa continuamente, desde a juventude (não precisa ser para inocentá-lo, como você já o fez com base em especulações). Apenas recomenda-se um pouco de cautela antes de formular um julgamento definitivo sobre esse emaranhado de paixões frustradas, ódios e ressentimentos (que, na sua visão, cautela essa você teve e deu ser veredicto final. Inocente). Complexo de sentimentos, aliás, que seria excelente material para o filme que Woody Allen não fará (era só o que me faltava, né?).

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Não sou crítica de cinema, não sou conhecedora de todos os filmes de Woody Allen. Mas seria uma linda oportunidade para seus defensores exaltarem essa obra, as características que a fizeram fato relevante no universo da sétima arte, e explicar a relevância dela que se desenvolveu à parte . Contudo, não foi isso que eu li no texto. Li o julgamento das acusações sob a óptica de um crítico de cinema. Que deveria estar fazendo seu trabalho -- falando de cinema. Não de uma acusação de estupro.

Em tempo: Allen disse que a carta de Dylan é vergonhosa e contém alegações faltas. A carta, você pode ler aqui (em inglês).

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