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quarta-feira, 20 de abril de 2011

São Paulo congela

O som das buzinas entre os carros enfileirados não ecoava mais na avenida. Não se via mais o motoqueiro que antes ziguezagueava entre as faixas brancas interrompidas desenhadas no asfalto. O trepidar incessante das ruas irregulares, que antes balançavam os corpos presos ao banco por uma tira negra de poliéster transversal, era inexistente. E dentro de cada um dos carros, os rádios que antes batucavam tantos ritmos e cantavam amores e desamores, bradavam quase que em coro: São Paulo parou.

Os motoristas congelados não conseguiam mudar a estação sintonizada no rádio do carro. Pouco importava – cada uma trazia, a seu modo, a mesma notícia: devido ao alto e descontrolado número de carros, São Paulo não tinha mais espaço pra deslocamentos.

A rádio da moda trouxe o autor do hit do momento para comentar – só tinha chegado ali graças ao helicóptero, adquirido com os rendimentos da última "turnê". Já a famosa pelas notícias de última hora provocava em tom irônico a ausência do secretário dos transportes, que deveria ir a público se manifestar diante da população. Mas ele não havia sido localizado ainda. Estaria preso no trânsito?

A ecológica falava ao telefone com um especialista da USP, que calculava os milhões de metros cúbicos de dióxido de carbono que seriam expelidos na atmosfera até os tanques dos carros parados secarem, poluindo ainda mais o nosso ar, diminuindo ainda mais a pífia qualidade de vida que a gente leva. E aquela cujo enfoque era economia trouxe analistas que detalhavam o impacto para a produção de petróleo brasileira, evidenciando a porcentagem da cidade no consumo da produção nacional.

Tanta explicação simultânea para aquilo que um dia já havíamos tido a previsão nas conversas de botequim, no café antes do expediente, nos quinze minutinhos antes de sair do trabalho, no papo de elevador. Alguns anos antes, naquele mesmo mês de março, alguns já tinham alarmado que a capital ultrapassara os impressionantes 7 milhões de veículos emplacados*. Estacionamentos verticais davam conta de comportar tantas cápsulas sobre rodas, mas o colapso era inevitável se todos saíssem às ruas em um mesmo momento. E isso, finalmente, aconteceu.

Dentro de cada uma destas cápsulas, os motoristas estavam paralisados. Não eram capazes de virar a chave. Não eram capazes de descer do carro. Ficaram ali, estagnados, fechados com o ar condicionado ligado (os sortudos) ou ao lado das janelas abertas sem vento (os modestos). Enclausurados dentro de seu individualismo, face a face apenas com seus pensamentos. Talvez em choque devido ao pânico da impotência, da imobilidade, da resignação. Pela primeira vez, eram obrigados a pensar na vida que levavam todos os dias ao trabalho, ao lado, no banco de passageiro.

Nos prédios, luzes acesas esperavam os trabalhadores que não iriam mais voltar. Nas ruas, olhos aflitos passeavam entre os pontos luminosos procurando rostos conhecidos no meio da multidão de latas camufladas por plásticos insulfim.

Naquela noite, ninguém dormiu.

Até que, ao nascer do sol, o primeiro motorista da fila de carros percebeu que tinha que assinar o documento da sensatez. Debaixo da pele da cidade é que devia correr o sangue paulistano.


*O texto é uma crônica, mas este dado assustador é verdadeiro

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Enquanto uma amiga querida narrava seu sonho (ou pesadelo?), construí
este texto mentalmente. Ela tem a incrível capacidade criativa
de despertar nos outros o melhor de si. E ela foi a responsável por
fluir meu espaço, meu texto, meus sentimentos, bloqueados pelas amarguras 
que infelizmente têm sido cotidianas. 
Mas quem disse que é ficção? Quem disse que esse congelamento não pode acontecer?

3 comentários:

Lydia disse...

ótima crônica, gabbbs... apesar de estar no plano do imaginário, é algo tão possivelmente real, assustador. é a tradução da falsa liberdade que achamos que temos: se não podemos ir e vir, se o próprio caminho se torna por vezes o impeditivo para nos relacionarmos com a cidade (as pessoas, os lugares...), algo tem que estar errado!

e hoje eu ganhei meu dia: "Ela tem a incrível capacidade criativa
de despertar nos outros o melhor de si.", rsrs. fofa!

beijooos

Eduardo disse...

Parabéns pela forma tão criatiuva de expressar sua visão sobre nossa cidade, gosto dos seus textos. Isso aqui é um caos mas amo SP.

Bjs,

Duh

stripolias disse...

obrigada, Lyds e Edu :)